Raízes e Horizontes
Da Fronteira da Paz a Montevidéu
Um ecossistema em silêncio, mas em movimento
Imagem gerada por IA Voltei do Uruguai esta semana com a sensação rara de quem viu algo importante acontecer — não um evento, não um anúncio, mas um processo. Desses que não fazem barulho, não ocupam manchetes, mas que, quando amadurecem, mudam a paisagem de um país inteiro.
A chamada Fronteira da Paz, entre Rivera e Sant’Ana do Livramento, é um desses lugares que desafiam os mapas tradicionais. Ali, Brasil e Uruguai não se encaram; convivem. As ruas não terminam na linha divisória, as pessoas não atravessam fronteiras — apenas mudam de calçada. É um território onde a integração não é discurso, é prática cotidiana.
O que me chamou atenção, desta vez, foi perceber que essa integração começa a ganhar uma dimensão nova, que vai além do comércio de fronteira ou do turismo ocasional. Há um ecossistema produtivo e logístico em gestação, que liga o interior do Pampa à capital uruguaia, e daí ao mundo.
Viajar pelo Uruguai é um exercício de observação institucional. As coisas funcionam sem alarde. Obras atrasam, sim — como a necessária revitalização de uma ponte sobre o Rio Negro, em Paso de los Toros —, mas o atraso vem acompanhado de orçamento, planejamento e comunicação clara. Não há improviso, tampouco ansiedade. Há método.
Paso de los Toros, aliás, é um ponto simbólico dessa travessia. No centro geográfico do país, longe dos holofotes, percebe-se um Uruguai que pensa o território como sistema: produção, beneficiamento, transporte, porto. Nada isolado. Tudo conectado.

Em Florida, a impressão foi diferente — e talvez por isso ainda mais marcante. Ali não se trata de passagem, mas de permanência. A cidade parece reunir, de forma quase natural, uma vocação para aglutinar pequenos e médios produtores, funcionando como um grande polo de beneficiamento colaborativo. Não como concentração de poder, mas como organização do esforço produtivo. Um parêntese: eu, meu sócio Jorge Furtado e amigos de um grupo operador logístico de Itajai-SC fomos calorosamente recebidos pelas lideranças de Florida, e registro aqui a extraordinária iguaria de carne bovina premium que provamos, almoço que decerto ficará gravado na memória vida a fora.

A lógica é simples e poderosa: produtores que isoladamente não teriam escala ou acesso a mercados mais exigentes encontram, nesse polo agroindustrial, estrutura para transformar sua produção em algo melhor acabado, com identidade, origem e valor agregado. É ali que o território começa a falar por meio do produto — com forte impacto de denominação de origem, qualidade percebida e narrativa. Florida não encurta distâncias até o porto; ela encurta distâncias entre quem produz e quem consegue competir.
Montevidéu surge, então, quase como um destino natural. Se Brasil e Uruguai fossem um funil, a capital uruguaia seria o ponto de escoamento. Não por imposição, mas por eficiência. Porto organizado, burocracia previsível, tempo de permanência de cargas menor. Coisas simples, mas decisivas.

Outro ponto que surgiu quase como intuição — dessas que não se impõem, apenas se revelam — foi a possibilidade de esforços conjuntos entre Brasil e Uruguai para pensar o deslocamento de pessoas, não apenas de cargas. A ferrovia, além de sua vocação logística, carrega uma potência simbólica e cultural que pode ser reativada com inteligência.
Levar visitantes de trem até Sant’Ana do Livramento, por exemplo, não seria apenas uma solução de transporte, mas uma experiência em si. A cidade reúne atributos raros: localização binacional, identidade própria, tradição, gastronomia e espaço urbano suficiente para acolher congressos, festivais e encontros que dialoguem com o pampa, a cultura de fronteira e a produção local.

Quando o deslocamento deixa de ser obstáculo e passa a fazer parte do evento, o território ganha centralidade. E Livramento parece reunir todas as condições para amadurecer, com o tempo, como um polo de encontros que celebra exatamente aquilo que a fronteira tem de melhor: convivência, diversidade e integração.
O contraste com o Brasil é inevitável. Não por comparação rasa, mas por reflexão sincera. O Uruguai parece ter encontrado um equilíbrio delicado entre forças políticas, interesses econômicos e presença do Estado. Não se trata de ausência de conflitos — eles existem —, mas de uma cultura que privilegia o ajuste fino, e não a ruptura permanente, afinal pessoas inteligentes não brigam, apenas divergem nas ideias e chegam a bons termos que equilibrem suas relações.
Voltei para casa no dia 12 de dezembro, ressonei agitado nas rápidas 3 horas de avião que ligam a capital uruguaia e o Rio de Janeiro, não pelo cansaço físico, mas pelo excesso de informação processada em poucos dias. Quando isso acontece, geralmente é um bom sinal: significa que algo está se rearranjando internamente.
O que vi foi um país pequeno em território, mas grande em coerência. Um país que entende que desenvolvimento não se constrói excluindo, nem acelerando além do razoável. E uma fronteira — a nossa Fronteira da Paz — que pode deixar de ser apenas simbólica para se tornar estratégica, no melhor sentido da palavra: como espaço de cooperação produtiva, de inclusão e de futuro compartilhado.
Talvez esse seja o maior aprendizado da viagem. Enquanto por aqui ainda debatemos atalhos, lá se constroem caminhos. Lentamente, sim. Mas com direção clara.
E isso, nos tempos que correm, é um ativo raro.




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