A CAPTURA DO ESTADO NACIONAL BRASILEIRO PELO CAPITAL RENTISTA


A CAPTURA DO ESTADO NACIONAL BRASILEIRO  PELO CAPITAL RENTISTA

A CAPTURA DO ESTADO BRASILEIRO PELO RENTISMO 

J. Carlos de Assis*

Paulo Lindesay**



A captura
do Estado nacional brasileiro pelo rentismo não é um projeto recente, nem
isolado. Remonta aos governos militares, tendo sido acentuada,
contraditoriamente, após a Constituição de 1988. Seu principal instrumento foi
a construção de uma imensa dívida pública que, a partir de determinado momento,
sob efeito da correção monetária e cambial, não teve contrapartida em
investimentos reais na economia. Essa dívida implica um pagamento anual de
juros, amortização e correção  que deixa
estreita margem para despesas públicas de interesse do povo.

Esse processo se refletiu
principalmente nos programas de desestatização, privatização e precarização dos
serviços públicos, paralelamente ao 
esmagamento pelas despesas financeiras do orçamento primário
discricionário da União. Isso implica sucessivos cortes nesse orçamento, a fim
de sustentar o serviço da dívida pública, que não tem limites desde que foi
introduzida na Carta Magna um dispositivo fraudulento em seu artigo 166, que
indicaremos adiante.

Assim, os ajustes
fiscais sucessivos para pagamento do serviço da Dívida Pública abocanham, em
média, cerca de metade do fundo público federal, em detrimento de despesas
primárias extremamente importantes para a população. Nestas se incluem despesas
com funcionalismo, saúde, educação, saneamento básico, construção de moradias
para pobres e, no atual momento de desastres climáticos extremos, os prejuízos
causados pelas terríveis enchentes e queimadas que temos visto em todo o
território brasileiro.

Além dos ajustes anuais
para equilibrar o orçamento primário, com cortes, aos níveis exigidos para
sustentar o serviço da Dívida Pública - que não podem ser cortados -, o
“mercado financeiro” exige,  através da
mídia a ele subordinada, ajustes estruturais que tornam ainda mais precárias as
condições dos serviços públicos. É o caso de terceirizações irrestritas nas
áreas fins do Estado, contratos com organizações sociais (OS) e consultorias
privadas e contratações precárias de servidores em todas as esferas de governo.

Chega-se ao absurdo de
desobrigar os entes federados de admitirem servidores públicos pelo regime
estatutário da lei 8112/1990. Agora, caminha-se em direção à criação de
fundações públicas de direito privado, com gestão privada, que poderão se
alastrar por grande parte dos órgãos públicos, executando funções específicas
de Estado. Com isso, tende a piorar a qualidade de prestação dos serviços
públicos, pois se desmonta a maior parte das carreiras dos servidores, enfraquecendo
as relações estáveis e garantias de empregos, inclusive dos concursados.

Tudo isso, detalhado mais adiante,
está centrado no objetivo de desidratação das despesas públicas primárias, onde
se contabilizam  o Estado Social
brasileiro, incluindo os serviços públicos, em favor do orçamento financeiro. Além
disso, o governo liquida os valores do orçamento federal primário, mas não os
executa em sua totalidade. O superávit daí resultante é também destinado ao  pagamento da amortização da Dívida Pública. Dessa
forma,  o Estado fica na posição apenas
de subsidiário (financiador) das políticas públicas, não mais de seu executor
pleno.

Com o imenso valor do
serviço da Dívida Pública, o Estado está forçado a garantir lucros crescentes e
vitalícios, através do mercado financeiro especulativo, ao grande capital rentista
e às grandes corporações industriais, comerciais e do agronegócio,
beneficiárias inclusive da chamada “moeda financeira”. Esta última é produto da
Selic, criada ainda na ditadura, com a faculdade de garantir rentabilidade
diária no over aos especuladores, bastando que estes deixem nos bancos suas
sobras de caixa  de um dia para o outro.

Utilizada pelo Banco
Central, de forma imprópria, para supostamente controlar a inflação, a Selic de
fato antecipa a inflação futura com 45 dias de antecedência, quando é anunciada
ao mercado, regularmente, nesse intervalo de tempo. Além disso, devido a sua
rentabilidade diária, e sua assimilação a uma taxa de juros elevada, ela
promove a migração do capital produtivo para o capital rentista no over,
refletindo-se na redução da produção e da oferta e contribuindo igualmente
dessa forma para o processo inflacionário.

É ainda a Selic,
equivalente, em suas operações no mercado aberto a uma taxa de juros,  o principal instrumento para o aumento
contínuo da Dívida Pública, pois ela se tornou o principal indexador do sistema
financeiro e da economia em geral. Nessa condição, recai também sobre o estoque
da Dívida.  O resultado é um montante de
serviço da Dívida Pública que, só de juros, ultrapassa  R$ 1 trilhão anuais.

 

Entretanto, vamos
recuar até o Governo Vargas, no período do Estado Novo, para examinar  como evoluiu um Estado indiscutivelmente
progressista para o Estado de serviços públicos degradados, como o atual, com
servidores em situações de trabalho cada vez mais negativas e desestimulantes,
e que acumulou, progressivamente, a partir da ditadura,  a gigantesca Dívida Pública que estamos
carregando ainda hoje.   

O objetivo explícito de
Vargas era modernizar o Estado e a economia brasileira, em contraponto com as
oligarquias rurais que funcionavam como uma espécie de estados independentes.
Sua primeira iniciativa nesse sentido foi criar, em 1938, o Departamento
Administrativo do Serviço Público (DASP), com o objetivo de acelerar a reforma
administrativa do Estado e impedir sua captura pelas oligarquias rurais.

Na busca de modelos
externos para orientar a organização do DASP, Vargas promoveu intercâmbios e
enviou bolsistas a universidades do exterior, principalmente norte-americanas,
mediante a promulgação do Decreto-lei n 0 776, que tomou o nome de Missão de
Estudo no Estrangeiro, de autoria de Luís Simões Lopes. Os candidatos tinham
auxílios para afastamento do trabalho e estudos 
oferecidos por uma instituição privada, Institute of International
Education (IIE), de Nova York, que distribuía bolsas em parceria com o governo
brasileiro, a partir de  seleção do DASP.

Portanto, a primeira
tentativa de reforma administrativa do Estado estava totalmente baseada no  modelo administrativo dos Estados Unidos.
Criaram-se,  ainda, órgãos nos estados,
conhecidos como “daspinhos”, nos quais os diretores entravam permanentemente em
contato com o presidente por meio de interventores da ditadura Vargas. Contudo,
o DASP foi um departamento que conseguiu construir uma tecnocracia, ou uma
elite técnica, cujas ações desagradaram as antigas oligarquias. Mas só seria  extinto em 1986, um  ano  após o final da ditadura e o início da
redemocratização política do Brasil, em 1985.

Em 1952, o governo
Getúlio Vargas havia aprovado  a lei 1711,
instituindo o Estatuto dos Funcionários Públicos Federais, pelo qual parte dos servidores
era admitida por concurso pelo DASP. Esse estatuto perdurou até 1990. Em
dezembro de 1990, foi sancionada a lei 8112, em substituição à lei  1711, que instituiu o novo Estatuto dos
Servidores Públicos Federais. Denominado Regime Jurídico Único (RJU), foi aprovado
pelo governo Collor de Melo, e subsiste até hoje. O novo Regime estatutário
veio para substituir as admissões dos servidores públicos  pós-Constituição Federal de 1988 por concursos
públicos. Até 10 de dezembro de 1990, esses servidores, na grande maioria, eram
admitidos no regime celetista, desde a década de 70, o que possibilitou  o virtual loteamento do Estado entre
políticos e pessoas influentes junto aos governos.

Em 1967, com a promulgação
da Constituição Federal da ditadura,  havia sido editado o Decreto-lei 200, a
primeira reforma administrativa do governo militar, nunca revogado. Primeiro
marco legal na tentativa de implantar a Administração Gerencial no Estado
brasileiro, pautou  o fortalecimento do
“Sistema de Mérito”, elaborando as diretrizes do “Plano de Classificação de
Cargos (PCC)”, e viabilizando a flexibilização das relações de trabalho no
setor público federal.  

Com isso, permitiu-se a
aplicação de dois regimes de trabalho: estatutário e CLT. É esse Decreto que o
Ministério da Gestão e Informatização (MGI) e a Advocacia Geral da União (AGU)
estão estudando para propor, neste ano, o novo projeto de lei com as diretrizes
da reforma administrativa infraconstitucional.

No início da década de
70 havia sido aprovada a lei 5.645/1970, estabelecendo as diretrizes para a classificação
de cargos do Serviço Civil da União e das autarquias federais. Quatro anos
depois, em 1974, outra lei importante, 6.185, foi aprovada e sancionada pelo
então presidente, general  Ernesto Geisel.
Ela avança em direção à concretização da reforma administrativa do governo
militar idealizada a partir da promulgação da Constituição Federal e do
Decreto-lei 200, de 1967.  

Esses dois instrumentos
legais possibilitaram que  grande parte
dos servidores públicos, na década de 70, fosse admitida pelo regime da CLT. A menor
parte

continuou admitida por concursos no
regime estatutário da lei 1711/1952. São os setores reconhecidos como inerentes
ao Estado, isto é, com atividades que somente o Estado executa, sem correlação
com o mercado privado. Os demais servidores estatutários, regidos pela lei  1711/1952, que não migraram para as novas carreiras
da CLT, ficaram em Quadro em Extinção ( QPEX).

Pela lei 5.645/1970, foi criado o
Plano de Classificação de Cargos (PCC) no contexto da reforma  administrativa do final da década de 1960,
nunca revogado. Baseou-se no Decreto-lei 200, de 1967. A lei consistia em
estruturar os cargos civis da União,  chamados,
 na prática,  de Classes, em Categorias Funcionais, que, por
sua vez, eram reunidas em 10 Grupos: I – Direção e Assessoramento Superior; II
– Pesquisa Científica e Tecnológica; III – Diplomacia; IV – Magistério; V –
Polícia Federal; VI –

Tributação, Arrecadação e Fiscalização; VII –
Artesanato; VIII – Serviços Auxiliares; IX– Outras atividades de nível
superior; e X - Outras atividades de nível médio.

Como se pode observar, o tratamento
privilegiado dado a alguns setores do funcionalismo não nasce do acaso ou da
preferência de governos de plantão no Palácio do Planalto, mas é baseado em um
arcabouço legal projetado pelos neoliberais, nunca revogado. São eles que
definem quais os setores dos órgãos públicos que são considerados estratégicos
para os governos e o mercado financeiro. A esses setores se dá tudo, aos demais,
as migalhas.

Em 1974, o governo do general Ernesto
Geisel aprovou a lei 6185, nunca revogada, com base no Decreto Lei 200 e como
base para mais uma tentativa de reforma administrativa e modernização do setor
público.  Os servidores públicos federais
foram divididos em dois grupos: os admitidos por concursos públicos pelo regime
estatutário, com atividades inerentes ao Estado como Poder Público, sem
correspondência no setor privado, e os demais servidores federais, admitidos
para cargos integrantes do Plano de Classificação no regime da CLT.

Portanto, as atividades inerentes ao
Estado não alcançam todas as atividades do Estado brasileiro. Apenas aquelas
exclusivas ou típicas dele e que são classificadas como essenciais à execução
do Poder estatal. Estão definidas no arcabouço legal, nunca revogado, no
projeto do MARE, a Reforma do Estado dos anos 90, capitaneada pelo ex-ministro
Bresser Pereira e baseada no senso comum dos servidores e de muitas
representações sindicais.

Grande parte das reformas
administrativas realizadas no âmbito da União desde a ditadura, e reforçadas
por iniciativas posteriores dos governos neoliberais, visaram principalmente à
redução de custos com o funcionalismo, e não com a melhora do serviço público. Dessa
forma, pretendeu-se, sobretudo, abrir espaço para cortes nas despesas do
orçamento primário em favor do orçamento financeiro. Este, atualmente, consome
só de juros para o pagamento da Dívida Pública Federal cerca de R$ 1 trilhão em
favor dos rentistas no mercado financeiro especulativo.

 A história da reforma administrativa do Estado
não finaliza aqui. Nos próximos  dois artigos
daremos continuidade a ela mostrando os mecanismos de destruição do  Estado Social brasileiro e da infraestrutura
econômica pública do País, representados pelas empresas públicas e estatais que
acabaram sendo privatizadas ou sucateadas,  em detrimento da qualidade do serviço público
e em favor do rentismo parasitário.

Entretanto, antes mesmo
de concluirmos a primeira matéria desta série, fomos surpreendidos pela decisão
absolutamente imoral do presidente do Senado, David Alcolumbre, de mudar
mandatoriamente para 4/3 a jornada dos servidores da Casa, oferecendo-lhes,
além disso, vantagens financeiras totalmente desalinhadas com as do resto do
funcionalismo público. A Câmara se prepara para seguir atrás, numa verdadeira
provocação contra a  maioria dos
trabalhadores do País. Contudo, provando sua traição ao interesse público, o
Congresso sequer havia aprovado  o  orçamento da União para 2025, o que deveria
ter sido feito até dezembro de 2024.

Isso não aconteceu
porque os parlamentares, na sua grande maioria, chantagearam o governo Lula em
represália à atitude do ministro do STF, Flávio Dino, que havia suspendido o
pagamento das Emendas Parlamentares. O próprio relator da Proposta de Lei
Orçamentária para este ano, o Senador Ângelo Coronel, do PSD/BA, afirmou em
vídeo que o Congresso Nacional somente a aprovaria o após a liberação das
Emendas, um verdadeiro escândalo!!!

Essa atitude política
do relator e dos parlamentares paralisou a estrutura de Estado. Até a presente
data, o governo federal executou apenas cerca de R$ 1,233 trilhão das despesas
orçamentárias. Desse total, cerca de R$ 851 bilhões, ou 69%,  foram executados em favor do serviço da
Dívida Pública Federal

(juros + amortização), um privilégio para os rentistas.  Além disso foram liberados por Medida
Provisória cerca de R$ 4 bilhões para o setor do agro, outro setor privilegiado.
De outro lado, a Medida Provisória 1286/2024, que garantiu a retroatividade dos
reajustes salariais dos servidores, não teve tratamento prioritário. Depende da
aprovação da LOA.

Foi aproveitando as vésperas do
carnaval, quando o povo estava totalmente voltado para a folia futura, que o
Senador Alcolumbre aprovou por baixo dos panos o pacotão de privilégios na
Casa:  aumentos dos salários dos
senadores, folgas extras, reajuste de 65% na cota parlamentar, com impacto
fiscal de R$ 5 milhões anuais, e escala 4 X 3, que representará uma carga
horária menor para o trabalho no Senado. Para a maioria da classe trabalhadora,
os parlamentares, cinicamente, querem aprovar a escala 6X1, o que significará
uma superexploração dela. Mudam as peças, mas o modus operandi continua o mesmo: garantir o privilégio do grande
capital financeiro rentistas e privilégios e benefícios para as  classe política e empresarial. Enquanto isso,
a população brasileira entra em 2025 com o custo de vida nas alturas!

Espera-se que a jornada
dos servidores federais contra esses abusos, que deve começar hoje no Rio e em
outras cidades e estender-se até sexta-feira, dê frutos e force o presidente do
Senado a recuar de sua decisão temerária. Esta agrava os desequilíbrios entre
as carreiras superiores e inferiores da administração pública,  presentes principalmente no Legislativo e no
Judiciário, onde já se concentram os maiores privilégios das categorias superiores,
enquanto, para os que estão abaixo delas restam condições salariais e de
trabalho  vergonhosas.  

 

* Jornalista e
economista, doutor em Engenharia da Produção pela UFRJ.

** Diretor da
ASSIBGE-SN/Coordenador do Núcleo Sindical Canabarro/Coordenador da Auditoria
Cidadã da Dívida Núcleo RJ.













































































Publicado originalmente na Tribuna
da Imprensa online (tribuna.com.br).




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