Tania Damasio Rocha
Destrua Este Diário
Liberdade Criativa, Limites Simbólicos e Responsabilidade Educacional
O livro Destrua Este Diário, de Keri Smith, tornou-se um fenômeno editorial ao propor a desconstrução física e simbólica do objeto livro como ferramenta criativa. Embora amplamente defendido como estímulo à expressão e à quebra do perfeccionismo, sua adoção indiscriminada em contextos educacionais levanta questões relevantes de ordem psicológica, pedagógica e social. Este artigo propõe uma análise crítica do uso do livro, especialmente no contexto brasileiro contemporâneo, discutindo os limites entre liberdade criativa e responsabilidade social.
1. A proposta do livro e sua leitura dominante
Destrua Este Diário se apresenta como um espaço controlado de transgressão simbólica: rasgar, rabiscar, sujar e deformar o livro fazem parte do processo criativo sugerido pela autora. A proposta é frequentemente defendida como:
- estímulo à criatividade;
- enfrentamento do medo de errar;
- desconstrução do perfeccionismo;
- liberação emocional.
Essa leitura, contudo, costuma pressupor a existência de filtros adultos, contextuais e institucionais, algo nem sempre presente na realidade educacional brasileira.
2. O risco da anarquia simbólica sem mediação
Do ponto de vista psicológico, é fundamental distinguir anarquia simbólica de anarquia social. O livro opera no campo simbólico, propondo a quebra de regras em um espaço delimitado. No entanto, crianças e adolescentes em desenvolvimento nem sempre possuem maturidade psíquica suficiente para realizar essa distinção de forma autônoma.
Sem mediação qualificada, a experiência pode ser interpretada não como exercício criativo, mas como validação generalizada da ruptura de regras, abrindo brechas para:
- banalização da transgressão;
- dificuldade na compreensão de limites;
- confusão entre liberdade expressiva e ausência de responsabilidade.
3. Universalizar não é incluir: a falácia da aplicação irrestrita
Um dos principais problemas associados ao uso educacional do livro é sua universalização acrítica.
Na prática pedagógica, é consenso que:
- diferentes perfis psíquicos respondem de forma distinta ao mesmo estímulo;
- intervenções que lidam com caos, ruptura ou desconstrução devem ser contextuais e acompanhadas;
- o que auxilia alunos excessivamente rígidos pode desorganizar alunos já emocionalmente fragilizados.
Portanto, tratar Destrua Este Diário como ferramenta universal ignora princípios básicos da psicologia do desenvolvimento e da educação inclusiva.
4. Famílias fragilizadas e a ausência de filtros culturais
O contexto social brasileiro atual impõe um agravante relevante: muitas famílias encontram-se exauridas emocionalmente e com pouca disponibilidade para mediação simbólica de conteúdos complexos.
Nesse cenário, a escola e os equipamentos culturais passam a ser os principais mediadores de sentido, o que amplia sua responsabilidade. Materiais que incentivam a ruptura simbólica, quando introduzidos sem contextualização, chegam às crianças de forma “crua”, sem o contraponto reflexivo necessário.
5. Professores e instituições: preparo insuficiente
Outro ponto crítico diz respeito à formação docente. A maioria dos professores não recebe treinamento aprofundado em:
- psicologia clínica ou do desenvolvimento emocional;
- manejo de efeitos colaterais psíquicos de propostas pedagógicas não convencionais;
- leitura simbólica de comportamentos disruptivos.
Introduzir práticas que lidam com desconstrução sem oferecer suporte institucional adequado transfere o risco para educadores já sobrecarregados, configurando uma falha de gestão educacional.
6. Liberdade criativa exige estrutura
A criatividade saudável não emerge da ausência total de regras, mas da tensão equilibrada entre liberdade e estrutura. Em ambientes educativos, isso implica:
- limites claros;
- objetivos pedagógicos explícitos;
- mediação constante;
- espaço para reconstrução após a desconstrução.
Sem esses elementos, propostas criativas podem deslizar para a permissividade, comprometendo o desenvolvimento da responsabilidade social e coletiva.
7. Uma posição equilibrada: critérios para uso responsável
Este artigo não defende a censura nem a proibição do livro, mas propõe critérios claros para seu uso:
- não universalizar;
- não glamourizar a destruição como valor em si;
- adotar apenas com faixa etária adequada;
- utilizar com acompanhamento adulto qualificado;
- inserir a experiência em um projeto pedagógico estruturado, com reflexão posterior.
Considerações finais
Em um contexto marcado por fragilidade emocional coletiva, sobrecarga institucional e ausência de filtros simbólicos consistentes, o uso indiscriminado de materiais baseados em ruptura simbólica representa um risco educacional real.
A crítica a Destrua Este Diário não nasce do medo da criatividade, mas da compreensão de que liberdade sem estrutura não emancipa — desorganiza. A responsabilidade educacional exige discernimento, contextualização e limites claros, especialmente quando se trata de crianças e adolescentes em formação.




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