Jose Carlos de Assis

Limites e vulnerabilidades da democracia quando lhe falta a base do compromisso público com ela

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Limites e vulnerabilidades da democracia quando lhe falta a base do compromisso público com ela Imagem desenvolvida por IA

J. Carlos de Assis, Editor-Chefe

A defesa da democracia não pode ser um fetiche ideológico. Tem que repousar sobre algo concreto, a fim de que não se transforme em instrumento de manipulação política. Os Estados Unidos, durante as décadas do pós-guerra, se arvoraram como os grandes defensores da democracia, recorrendo, para isso, inclusive, ao uso da força contra nações soberanas. Na verdade, sua intenção real era colocar um freio à expansão socialista, que ameaçava os interesses capitalistas americanos no mundo.

Não tinham mandato legítimo nesse sentido. Baseavam-se na força e na cooptação ideológica e política de cúmplices internos nos países afetados. Com isso, construíram o império industrial, econômico e financeiro  que se tornou hegemônico no mundo. Até que, enfime, esbarraram nas forças concorrentes da China e da Rússia. Estas, não sendo consideradas democracias, são discriminadas a título de serem regimes autoritários. Contudo, o que aproveitaria a seus povos se copiassem as democracias ocidentais?

Do meu ponto de vista, nada. Tanto a cultura russa quanto a chinesa tem suas raízes profundas enterradas em sistemas autoritários, que foram derrotados por revoluções nacionais com intensa participação popular. A Rússia derrubou um monarca absoluto sanguinário, cuja linhagem exerceu cinco séculos de poder absoluto. O império chinês durou milênios, até ser enterrado por Mao Tse Tung e entregue ao Partido Comunista, que tem um sistema educacional similar ao histórico mandarinato. Depois das revoluções, esses países se estabilizaram sob novos regimes políticos.

Como seria o exercício da democracia ocidental nessas nações? A China, com 1,3 bilhão de habitantes, se tornaria a potência industrial e econômica que é hoje, a partir de uma economia rural quase primitiva, não mais que quatro décadas atrás? A Rússia ocuparia um lugar de destaque entre os países emergentes, o BRICS, depois do experimento soviético? Tenho minhas dúvidas. A democracia é um sistema político extremamente instável, vulnerável à ação conspiratória de seus próprios beneficiários, como aconteceu no Brasil em 64, e quase de novo, agora.

Como o governo de Donald Trump está provando, nem nos Estados Unidos, que se arvoram como o primeiro país democrático do mundo, a democracia está funcionando plenamente. Um país que elege como presidente o autor de um atentado contra ela própria, mediante o estímulo aos vândalos que assaltaram o Capitólio há pouco mais de quatro anos, deveria estar na cadeia, e não, novamente, chefiando a Casa Branca.

Trump não só tentou derrubar a democracia americana, mas na verdade exerce o poder como um ditador. Sua política antimigratória radical viola os direitos humanos, sua política educacional se resume ao cancelamento por razões políticas de recursos públicos destinados tradicionalmente às universidades, e sua política de saúde está colocando em risco a vida de milhões de cidadãos americanos com o corte de verbas para remédios e o negacionismo da validade das vacinas, vocalizado por Robert Kennedy Jr.

O espetáculo grotesco da Virgínia, onde foram reunidos, anteontem, 800 generais de quatro estrelas das Forças Armadas americanas, vindos de todas as partes do planeta, revelou até que ponto uma suposta democracia pode ir, com o único objetivo de atender à vaidade do presidente e de seu secretário da Guerra! O show ridículo custou milhões de dólares. Pensava-se que iria ser anunciada uma nova doutrina militar americana, mas nada. O auditório reagiu com silêncio absoluto e patético diante das ridículas advertências dos dois comandantes supremos, entre as quais uma crítica aos militares gordos!

No plano internacional, o tarifaço imposto unilateralmente sobre produtos importados pelos Estados Unidos tem sido um claro movimento no sentido de afirmação de um poder imperial que pretende ser aplicado de forma universal ao mundo todo, obedecendo aos interesses americanos. Isso, também, é característico de ditaduras, disfarçado de defesa da economia nacional. O apoio ao genocídio em Gaza, por sua vez, mostrou a profundidade da aliança de Trump com outro ditador efetivo, Benjamin Netanyahu.

Portanto, que não se faça da “democracia” um valor objetivo em si, pois ninguém sabe o que ela é de fato. Apenas podemos reconhecê-la pelo lado negativo, ou seja, quando ela está ausente, e o espaço político vago é ocupado por um ditador indiferente aos interesses públicos. Nesse caso, temos de lutar por ela e preservá-la, como o Brasil fez, enfrentando os militares do golpe de 64 e a tentativa desesperada de Bolsonaro de se manter no poder, recentemente, com sua curriola de golpistas.

A experiência autoritária do Brasil, do ponto de vista econômico, foi extremamente positiva. O Governo Vargas promoveu a modernização do País contra a oligarquia cafeeira retrógrada, e o Governo Geisel, durante a ditadura militar, promoveu a segunda etapa da modernização industrial brasileira, que o breve período democrático depois de Vargas, exceto no intervalo de Juscelino, não conseguiu realizar. De fato, a democracia de Fernando Henrique, de Lula, de Temer e de Bolsonaro simplesmente nos enterrou no neoliberalismo e na estagnação econômica.  

O ideal, claro, é conciliar afirmação dos Direitos Humanos, liberdade de expressão e de imprensa, direito ao voto para transição do poder e os direitos sociais. Contudo, esses predicados da democracia podem conviver perfeitamente entre si, mesmo quando a sociedade requer uma dose de autoritarismo para enfrentar desafios extremos em defesa dos interesses nacionais e sociais, esmagados por oligarquias econômicas.

Sob Fernando Henrique e Lula, a democracia brasileira produziu mais retórica do que mudanças estruturais profundas, que libertassem o povo das amarras das classes dominantes. Essas lhe impõem um conformismo permanente com as situações de degradação social que afetam a esmagadora maioria das famílias de baixa renda, que não têm a quem apelar, já que o sistema político, como um todo, está corrompido.

O fato é que a tentativa de impor a outros países uma democracia abstrata, ou qualquer tipo de regime político, é uma violação da soberania nacional. Esta última a gente sabe o que é, diferentemente da democracia. Nenhum país  pode, a priori, julgar e atacar um outro por, supostamente, não ser democrata. Isso porque as razões de um regime autoritário, além de históricas, podem estar fundadas na defesa do interesse nacional concreto. É o caso, por exemplo, da Venezuela de Chavez e de Maduro.

Qualquer pessoa com um mínimo de informação sobre relações internacionais sabe que não é o amor à democracia, mas a cobiça pelas maiores reservas de petróleo do mundo, detidas pela Venezuela, que está por trás dos ataques americanos a esse País . Outras nações latino-americanas e europeias, inclusive o Brasil, seguiram como carneiros a postura agressiva de Washington, a pretexto de punir a recusa de Maduro de aceitar o resultado das últimas eleições. O Brasil chegou a vetar a entrada de Caracas no BRICS. Entretanto, Maduro estaria entregando o petróleo venezuelano às multinacionais do setor do setor se deixasse o poder.

A oposição interna ao presidente autoritário da Venezuela estava sendo abertamente apoiada pelos americanos, agora não mais sob o pretexto de combater o socialismo, mas de atacar o narcotráfico. E isso não fica de graça. A petrolífera PDVESA tem sido um antro de corrupção, é verdade, mas ao mesmo tempo revelou-se um instrumento de promoção social. A oligarquia venezuelana não gosta disso. Fez de um capacho de Washington, Edmundo González, seu candidato de extrema direita ao Governo. Ele apresentou na campanha, praticamente, um único compromisso: uma aproximação maior com Washington. Este é um exemplo de democracia!



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